quarta-feira, 26 de abril de 2017

Concílio por Afrodite (2ª parte)

A erudita deusa apreensiva,
Tentou a sua última investida,
Antes da escolha da irmã, decisiva,
E que para as almas era merecida.
“Minha irmã! Os sentimentos são severos
Quando não são correspondidos.
Faz-te acompanhar por Anteros
Para que não hajam corpos iludidos.”

A irmã do amor parou e refletiu,
Expôs a sua vontade ao pensamento;
E nisto, conclusiva, anuiu
Que seria isso importante ao sentimento.
Na investida, Anteros viria a servir
Mais tarde do que a sabedoria o pedira,
E por isto Atena tentou intervir,
Mas do excelso trono Zeus a impedira.
   
“Oh meu majestoso pai!
Porque me não deixaste intervir?
Aos pés da desilusão toda a alma cai,
Não há deus nem alma que a possa destruir!”
Zeus olhou do alto, abaixo de seus pés
E clamou: “O momento não é agora!
Como erudita que és
Saberás quando é a hora!”

Eros mirou certeiro
E a flecha se soltou;
Fez de dois seres um inteiro,
No peito de cad’alma entrou.
É o momento em que o sentimento eclode,
É uma razão que muito se escusa,
É agora que o coração explode,
É agora que o olhar se cruza.

As almas param no passeio,
No Olimpo todo o deus se cala,
As almas descartam o receio
Pois agora, só o coração fala.
Devem saber as almas, ao sentir,
Que o amor não é conceito!
É o que faz realistas iludir,
É o que faz dos deuses o preceito!

Afrodite, sua vitória vociferou
Por meio dum sorriso silencioso.
Olhou mais alto, e o peito apertou,
Mostrando aos deuses o seu querer ocioso!
Atena não desmontou a expressão,
Não se lhe foi roubado o saber.
Voltou costas aos céus, sem emoção
Regressou à terra, ao lar do seu dever.

Todos os deuses voltaram à divindade,
E muitos foram sem o ir de pensar;
Afrodite ficou olhando a mortalidade,
Ficou pensando em ao passado regressar.
Sentiu a pele tocada pelo adultério,
Sentiu do guerreiro, as mãos, a percorrendo,
Sentiu o tom repreensivo do minério.
Amor, desejo, carne e prazer em si ardendo!
  
Queria ela alastrar a sua dor,
Para que todos, possíveis, sentissem o que sentiu,
Queria infiltrar nos seres a chaga do amor,
Pra ver de fora como o amor lhe mentiu.
Por isto, Ares não retornaria
Não voltaria o amor da imortalidade,
De novo ele não a despiria,
Não fariam de seu sonho a realidade.

Por fim, Citereia as costas voltou,
Deixando este fado decorrer,
Este amor por fim tolerou
Para que nenhum deles viesse a perecer.
O Olimpo não se esvaziou
Não se recolheram todas as potestades!
Um destino novo, para os mortais, fantasiou
O submundo, morte e dor do malogrado Hades.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Concílio por Afrodite

E no Olimpo acima dos céus,
Sentado no trono colunado,
Está o majestoso, imponente Zeus,
Glorioso ele, de rosto iluminado.
Olha outras divindades discutindo,
O que do fado querem fazer;
E dos outros! Estão dos outros decidindo
Como os seus rios vão correr.

Afrodite, esbelta e magna
Olha do alto os mortais míseros
E o seu olhar neles estagna.
Ao seu lado, sentado, está Eros,
A criança que mais amor criou,
O adulto que racionalistas iludiu
O adolescente que corações ligou
Ele, a loucura que sãos invadiu.

“Observa homem alado!
Olha o passeio citadino, invadido
E quase nu, de solidão povoado.
Tens lá almas com o coração despercebido!”
Disse Afrodite, receando invasões,
Que desnecessárias fossem aos seres;
Não queria o risco de malignas emoções
Nem tampouco exceder os seus poderes.

“Diz-me o que queres!
Diz-me o que devo fazer!
Não deixes que vão, não esperes
Não deixes a oportunidade desvanecer!”
Observando, num recanto,
Estava Atena, imponente e racional
Ignorando das “sereias”, o canto
Resistindo à tentação emocional.

“Afrodite!”, vociferou
A deusa da sabedoria
Pois sua mente se alarmou,
Para o que sua irmã despertaria.
“Não cries nas almas amor,
Pois se o rio não correr
Ouvirás longe o seu clamor,
Implorando, para que faças tudo perecer.”

“Oh minha irmã sapiente!
As almas feitas são para sentir.
E sossega! Toda a alma é contente
Quando por mim se deixa invadir.
Não há perigo, não há receio
Não há sustento à preocupação!
O seu oco ficará cheio,
Se erradicará a escuridão!”

“Erradicar-se-á a escuridão,
Preencher-se-á o interior,
Mas as almas abandonarão a razão
E a sua mente não terá valor.
O pensamento nato só irá despertar,
Quando a desilusão os invadir,
No momento em que a aliança se desfragmentar,
Quando o chão aos seus pés se abrir.”

A distância nos passeios decrescia,
As almas estavam-se a aproximar,
O tempo do encontro diminuía,
Estava perto o cruzamento do olhar.
Citereia, insuflada de vontade
Pediu a Eros para apontar,
A flecha da benigna mortandade,
A linha do novo fado a traçar.

(Continua...)

sexta-feira, 31 de março de 2017

Lua nova

Astro vivo, incides em mim
Essa luz tua, inexistente,
Que me faz ver onde certo, o fim,
Me vou encontrar, finalmente.
És tu, signo duma tumba,
Onde irei repouso ter;
Em ti, esperas que sucumba,
Por misericórdia, ter-me aí a perecer.

Vento lá, não sentirei,
Porque o já não sinto passar;
Da chuva, não me abrigarei,
Pois dela já não me sinto molhar;
Das bocas, nada ouvirei,
Pois surdo hoje sou;
E dos abraços? Não os terei,
Pois hoje nem Deus me abraçou.

O tudo de hoje é nada.
Nada! Nada! Nada!
É verdade ultrajada,
É tudo esperança malograda,
Da vida, esta, já findada!

É negra, essa lua
Pois espelha o perecer;
Representação da morte, é sua,
Por do homem, a vida esmorecer.
Ela é dos danados o hino!
Ela é o último destino!

E quando eu, finado,
De terra e pó me cobrir,
Que se não lembre o que hei caminhado,
Pois seja só descanso, meu novo porvir.

Façam-me o epitáfio, somente,
Escrevendo o que vos aprouver,
Dizei-me “louco, poeta, demente,
Homem sentido, que se não soube viver”.
Afirmai que ali não estou, repousando,
Pois o que sonho, não cabe numa cova.
Escrevei que fui até mim, voando,
E que estou sepultado na lua nova.

Sabei que fui, de ir sincero,
E por isso me permiti levitar!
Fui lá, pois o que quero,
Não cabe sequer no meu sonhar.

Fui, por querer a lua nova.
Fui, pois, porque sim.
Fui, porque fui até mim.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Que chegue a hora!

Oiço no meu sonhar,
Palavras que há muito ouvi.
Vejo no céu azul, ao olhar
Tudo aquilo que em ti vivi.
A luz do dia, assim cinzenta,
Mesmo com o sol brilhando,
Faz da minha vontade mais sedenta,
De ir até ti, caminhando.
Leva-me, protege-me,
Guarda-me, abraça-me!

Olhar só, este o meu
Procurando por ti no nosso lar,
Dá-me a crença desse céu
Para onde te quero falar.
Olho para o alto, esperançoso
Por te ver acenar,
De semblante carinhoso,
Para meu espírito se iluminar.
Sorri-me,
Ampara-me.

Sabes? Tenho em mim frio.
Frio aterrador deste mundo pérfido.
Medo, de todo o coração sombrio
Dos outros, do seu olhar perdido.
Mostraste-me adágio nato,
Daquilo que é a pura bondade.
Não se acostuma, de meu ser, o palato,
De sozinho, ver do mundo a realidade.
Estou eu. Estou só.
Só.

Quero estar mais perto.
Quero subir até aí!
Quero o teu céu, como certo
Para me poder abraçar a ti.
Quero ir para a lua
Para que a distância decresça,
Para sentir mais, a alma tua
Para que meu ser rejuvenesça.
Quero até adormecer,
Neste quarto minguante,
De sua face, a escurecer
Para o pensamento periclitante.
Não temo nada, para te ver;
Tudo suporto para chegar ao teu ser.

Olhar teu, o mais puro,
Abraço teu, o mais seguro.
Preciso muito, preciso
Ainda do teu colo e do sorriso.
Preciso de ti agora,
Mais do que nunca;
Que chegue a hora,
Que chegue a hora!

A tua eternidade
Reside-me na memória,
Craveja-me mais profunda a saudade,
Naquilo que és, na minha história.
Se te for possível,
Vem de novo para aqui,
Ou faz minh’alma invisível
Voar para o pé de ti.


Deste sempre, sempre e sempre eterno, menino do avô.

terça-feira, 7 de março de 2017

A gratidão no agradecer

O homem reside em si, fechado num corpo que é seu, com um espírito leve que tem a possibilidade de se fazer separar da mente e voar por esse mundo fora. São este corpo e este espírito, que em uniformidade, devem reavivar-se e prover-se de brancura, amizade, pureza e amor por parte dos que lhe são pares. Aí reside o outro; aí residimos nós mesmos. No outro estou eu também! Há um pouco do nosso olhar que cai e fica no ser de cada um, entra, procura conforto e mostra a vontade de ficar. Assim faço; entro com vontade para ficar. Se mo permitirem, eu vou agradecer. Se o não fizerem irei agradecer na mesma medida.
Agradece hoje a vida, porque amanhã a oportunidade pode não te ser dada pela fatalidade que os dias carregam em si; a condição mortal do homem, não permite que após o último respirar se possa agradecer. Ninguém é capaz de agradecer a vida depois que o corpo adormece e gela.
Agradece os dias que te são dados, pois eles são sempre uma oportunidade de praticar o bem com os que são teus e com os que te dizem algo e muito! São os dias que te permitem agradecer até a ti mesmo. Agradece-te também, pois mereces!
Agradece a quem te tem; agradece a quem te pertence. O amor dos outros é motivo de alegria, pois significa que existe partilha e plenitude na comunhão dos laços e da energia. Olha para os que estão do teu lado e sabe que estão ali para ti. Agradece a quem sozinho te ensina a caminhar. Agradece a quem está contigo nos dias de chuva e nos dias em que a vida parece não valer a pena. Agradece a quem te conhece pelo olhar, pela expressão, pelo tom de voz, pelo jeito como mexes as mãos, pelos sonhos. Agradece a quem está contigo nos maus momentos, sem que seja preciso dizeres que o momento é negro. Agradece a quem se ri contigo, mas não te esqueças de agradecer também a quem te dá o abraço de conforto. Todos te merecem pela sua paridade e igualdade no ser, mas olha-te no sentido de compreenderes que os outros também te merecem pelo mesmo motivo. E volta a agradecer.
Hoje, permite-te abrir as palavras e diz obrigado! Permite que de braços abertos te possam agradecer o que lhes vales! Sabes como podes retribuir? Abre os teus braços e abraça todos os obrigados que te dão.
A todos vocês, por tudo

OBRIGADO!

sexta-feira, 3 de março de 2017

Anjo humano


Ei-lo no mundo, prostrado,
Embatido no solo frio,
Alma viajante, corpo petrificado
Na existência do vazio.
Sonho de êxtase acalentado,
Sumir de ser, o pertencer;
Verbo extenuado
Na miserabilidade do seu ser.
Ali estava.

Ribombante sonoridade
Descia sobre o corpo moribundo,
Mirava sua mortalidade,
O ser que não era do mundo.
Cru olhar.
Crua expressão.
Maldito sonhar.
Maldita emoção.
O homem sem si levantou o olhar,
Encarou o anjo descendo, frio até no levitar.

Não pisou a terra o anjo,
Ficando em si suspenso;
Com seu orgulho sobejo
Fez do doer o mais intenso.
A seis palmos ficou da terra,
Abrindo os braços sedentos,
Sete voltas sobre si encerra
Com treze bateres de asas violentos.

O mortal definhando, assim temeu
O querer da criatura,
Seria a ira do que prometeu
Que levantava tal postura?
Perguntava na intimidade,
Este ser de ser agora,
O retorno da fatalidade
Com sua génese na demora.

De tudo o homem, aterrado,
Em si vivendo, todo o medo
Do anjo ter encerrado
Ao seu peito, um rochedo.
Olhou de coragem o belo ser,
Conhecendo a mulher alada,
Recusou-se no conhecer
A essência da que era amada.
Ser o ser sem que fosse nele,
Ser do tudo sem que fosse dele.

“Commoriatur in te!” disse
O anjo com altivez.
Talvez assim o homem ouvisse
No sentir a rigidez.
Rigidez que mais não era
A infame realidade
De se forçar à infinita espera
De entregar o sentimento à mortandade.

Nos olhos negros a fitou,
Procurando por onde estava
O ser único que estimou,
Mulher do tempo ido que amava.

À mutação nada se nega,
Pois é um querer irrefutável,
De partir donde se chega,
Para um destino “irretornável”.
“Que me queres criatura?
O que destinas de meu fado?
Depois dos dias da brancura,
Crês que me farei derrotado?”  

“Commoriatur in te!” vociferou,
Mais uma vez em si irado,
Dirigindo ao mortal que tombou
O seu desdém mais determinado.
O anjo por espanto, petrificou
De ver o homem se erguer,
Mão direita o peito encontrou
Por lhe ver a alma renascer.

Levantado o homem, em simplicidade
Puxou o anjo até ao solo,
Lembrou-lhe a sua humanidade
Mostrou-lhe o seu precisar de colo.
“Vê mulher alada, a tua igualdade
Que assenta os pés no pó da terra!
Tu não és do mundo, a divindade
Não és meta onde se tudo encerra!”

O anjo se lembrando
Do seu ser, profundo humano
Lembrou da vida, de si errando
Viu na frente, o seu eu mundano.
O homem do seu querer, terminando,
Na sua alma o conformou.
E nos olhos do anjo penetrando
“Commoriatur in te” lhe segredou.

O anjo, à humanidade retornou.

O homem, a velha vida fulminou.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Não sei

Todo eu, o mundo em mim
Profundidade eterna
Luz negra, sem ter fim.
Oh, Tu! Grandiosa caverna
Onde me refugio, pensante
E onde tudo o que sou me invade;
Todo o meu eu errante
Fragilidade, vitalidade, realidade,
Divindade infinita de não ser
O eterno mortal que, ansioso,
Almejo tornar-me. Sou amanhecer
E alvorada noturna, sou dia luminoso
Em penumbra crepuscular.
Sou o renascer do dia a terminar.

Energia insólita
De quem não pode caminhar.
Alma que palpita
No seu ser a definhar.
Sou eu, somente eu;
Um Pessoa mortificado pela dor de pensar.
Medo pelo amanhã não terminar,
Ansiedade pura por ver a vida não parar.

Sou o nada no tudo que é o mundo;
Sou o tudo no nada que não sou.

Moira dos dias findados,
O que me diz o fio?
Serão dias esperados
Ou será Estige o meu rio?
Sabeis quem sou?
Nem eu vos posso dizer.
Sabeis para onde vou?
Não pergunteis, pois não vos saberei responder.

Sei que sou o morrer
No querer viver.
Sou homem a saber
Sem querer me conhecer.
Ser e espírito soturno
Iluminado por sentimental razão,
Esperança estrelada do céu noturno,
Energia lunar de eterna fusão.

Sou a Fénix que Mintaka consentiu,
Réstia de luz da vida que partiu.
Tudo o que fui, aí irei retornar:
“Terra, pulvis, cini, nihil”.
Serei filho da cinza a reavivar?
Serei primogénito da inocência ardil?
Sou todo o ser na escuridão a procurar,
Sou o que na luz não consegue encontrar.


Não sei.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Pareceu-me ter tido uma visão. Rápida, duradoura, estrondosa, habitual... Pareceu-me ver a inocência a vestir vermelho!
Por baixo dos meus pés, enquanto a via, abria-se uma fissura. Não me preocupei, era quase impercetível. Mas comecei a pensar. A fissura aumentou consideravelmente. Mas nunca eu poderia caber nela. Pensava no vermelho. Pensava na inocência. Afinal de contas, o que nos diz a razão acerca destes dois termos? Diferente, diferente, diferente. O pensamento difere de cada para cada! Fantástico! Digo-o com espanto porque há almas por aí carecidas de livre-arbítrio que não conseguem pensar ainda livremente, que não colocam o espírito da razão nas folhas de um Rousseau, ou de Montesquieu; talvez de um Pessoa ou talvez um Saramago; de um Stephen Hawking ou de um John Lennox. O livre-arbítrio é a melhor dádiva dada ao homem. O homem poder pensar por si mesmo, pensar em tudo o que o rodeia, saber tomar decisões por si mesmo sem que por isso, tenha de ser enxovalhado em praça pública. O pensamento alimenta o conhecimento e o conhecimento alimenta-se a si mesmo e ainda sobra muito para a alma.
Mas o vermelho e a inocência. Diziam que vestia vermelho. Os meus olhos não viam nada de estranho, não viam esse vermelho, esse escarlate que se dizia inofensivo mas os avisos acorrentados não gritaram suficientemente alto para que eu não quisesse ver. A minha sede de levantar as cortinas que encerravam os meus olhos foi bem mais forte que qualquer aviso que me tivesse dado o mundo. Levantei e foi um fascínio! Conhecer nova cor no mundo! Mas a angústia crescia em mim. E com ela aquela fissura por baixo dos meus pés abria-se já a passos largos, sem sequer disfarçar que me iria engolir. E resisti! Pensei que não iria cair dentro dela e ser engolido pelos estouros fantásticos da rocha a quebrar, das pedras a rolarem. A aventura, música para os meus ouvidos! A exaltação do nosso ser de que estamos acima de qualquer consequência por nós somos nós e os infortúnios são todos destinados aos outros, apenas e somente. 
AINDA NÃO CAÍ!
Continuei a ver o mundo em vermelho e em mim, sem perceber porquê crescia um pesar e uma angústia. Mas queria ver mais ainda, ainda que eu próprio estivesse bem ciente já do futuro que iria chegar num ápice. Nada de nada é inocente. Ninguém por ninguém é inocente. Os olhos. Os olhos. OS OLHOS!! O mais mortífero par de adagas! E eles estavam manchados do vermelho! E eu ainda assim acreditei. Acreditei. E percebi porquê; porque a esperança era branca. E depois disso, até ela foi manchada.
Não vim aqui falar de conhecimento, vim falar da corrente que segue incessantemente por meio de caudais desconhecidos, a que os restantes chamam vida.
Do fundo da abertura térrea ouvi um rugir. Tentei segurar-me; tão em vão! Caí em abraços com as pedras, banhado pela terra. A cabeça batia em obstáculos, vários obstáculos. E o fim da brecha, ainda não terminou. 
Vamos indo e vamos caindo!

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Estou recostado no meu leito, ao som de mais uma noite que passa para mim quase despercebida. Como passaram muitas outras antes desta e como irão passar muitas muitas outras daqui para a frente, certamente. O que diferencia é o "quase". Há sempre algo na noite, no dia que marca a diferença. 
Na mesinha de cabeceira está um relógio marcando números (ele, a prova do poder do homem sobre o tempo), um candeeiro aceso, uma chávena com chá morno de alguma coisa, pois não me dei ao trabalho de ver do que era; camomila, ou mesmo preto. Tenho também uma carteira com algumas moedas para o capuccino de amanhã, ou de depois de amanhã, não sei bem. Ou mesmo para um café, numa esplanada, marcada pelo escuro dos raios de sol que tentam penetrar pelos guarda-sois abertos. Está aqui tudo como ontem! Está também o pensamento, sempre sempre ativo, freneticamente estagnado no vento que não tem força para o alterar. Além do mais está um livro! DOIS! Pessoa e Allan Poe; luz e escuridão; venha o diabo e escolha! E depois o pensamento, que esteve, está e estará!
Depois o dia, um pôr-do-sol ou um amanhecer, conforme nos apeteça, que tenta mostrar que há oportunidades nos dias, nas horas, nos minutos e que nada de nada, nem uma respiração, nem um piscar de olhos são em vão. Mas são! Tudo é em vão pois tudo é fruto de um acaso que teima em estar justificado. Nada sabemos.
A vista teima em querer ver, em querer ser inflamada por imagem. A boca anseia por uma respiração forte ou por um roer de unhas para acalmar o nervosismo. Os ouvidos teimam em ouvir a chuva ou a música que silencia o barulho e que acaba por ser silêncio verdadeiro (e que ninguém deve nunca quebrar!). As mãos querem uma caneta e papel. O nariz quer o perfume de ambientador colocado estrategicamente por cima do relógio (tic-tac, tic-tac, tic-tac, infinitamente(até que se lhe não dê corda)) para cortar a dureza calmante do oxigénio. Mas se calhar não é bem isto que quer o nariz. Não importa, para agora passa despercebido. Se sair lá fora, irei encontrar uma inundação, uma verdadeira população de ausência. Os passeios estarão sem pés apressados, as ruas sem os coches motorizados, as luzes acesas para uma ausência que persiste em estar excessivamente presente. Mas eu estou aqui, aqui onde estou todas as noites, aqui onde com tinta sujo todos os dias um novo papel, onde desgasto as teclas desta máquina. E o que encontrei! O meu pensamento de novo! Pensei que se tinha perdido, sabendo sempre que estava bem aqui. E na mente o que se passa? Muita coisa que nem sei bem especificar ao certo. E lá fora há tempestades! Lá fora o vento sopra, acarinhando as árvores outonais, a chuva lava os terraços marcados por várias vidas e lava o próprio céu, lavando os pensamentos que se elevam pelos ares na penumbra da noite que não cessa. E cá dentro também as há! Mais um vez a cabeça teima em pensar, com uma velocidade alucinante. E há trovoada ainda por cima! Tudo à mistura, como deve ser uma boa, muito boa tempestade! A verdadeira tempestade elétrica!

segunda-feira, 13 de abril de 2015

-Pedro? Pedro? Pedro! Estás aí?
Ele estava desesperado a chamar por mim. Não lhe respondi logo pois não tive coragem. Não sabia bem o que lhe dizer, porque bem sabia o porquê de ele me chamar. No entanto, apesar de hesitação, respondi, porque sabia que precisava de mim.
-Diz-me. Aqui estou, podes falar.

Sabia que ia ser difícil falar nesta altura, ainda que as palavras fossem de apoio, as que tinha pensado eram as habituais, as que toda a gente dá.
-Já soubeste o que aconteceu?
-Já. Sabes que vi e vivi tudo aquilo que viveste desde a minha criação. Estive contigo todos os momentos, não te deixei. Não falei, é verdade, mas sabias que a minha presença te confortou apesar do silêncio e às vezes as palavras que são ditas pelo silêncio são as melhores para o nosso interior. Por mais que queira não há muito que eu possa fazer. Apenas posso estar do teu lado. 
O tom com que falei deixou-o pensativo. Ele olhou o horizonte no qual o sol se punha, e por entre aquelas ameixoeiras floridas, os raios penetravam os seus olhos como carinhos de pai. Olhou para cima de depois deitou os olhos ao chão. Entristeceu-se profundamente e gritou para dentro de si: logo, para mim.
-Foi tão cruel! Tão tão duro! Porquê a ele, porquê agora? Eu acreditei sempre que ele voltaria, feliz e saudável! SEMPRE!
Os olhos dele escorriam depois de dizer isto. Apenas me sentei no seu coração e disse:
-E ele voltou para ti. Ele voltou para casa, ele está aqui contigo! O corpo é apenas um instrumento que acreditas que o teu Deus te dá para caminhares aqui. Depois disso, depois desse corpo perecer resta o realmente importante: a alma. É essa alma que agora veio até aqui. Essa alma une-se à tua memória, às memórias que tens desse homem fantástico, desse teu avô que para ti foi um pai. As boas recordações fundem-se e o teu coração torna-se mais macio e surge-te um sorriso por saberes que enquanto viveu em corpo, viveu bem e feliz! Não desanimes. Apenas tenta sentir a alma dele. Ela está realmente contigo!
-Eu sei que está e eu sinto-o! Mas custa-me tanto subir a rua e acreditar que o vou ver sentado no banco cá fora, como se estivesse, todos os dias, à minha espera... E quando me via ao longe, soltava um sorriso, batia palminhas e eu sentia paz. Conseguia sentir que era amado realmente. Eu espero-o, ainda espero que ele volte, que chegue a casa! Espero chegar a casa e encontrá-lo, estou em casa e venho até cá fora, olho para a rua e espero que o venham deixar; anseio o seu abraço, anseio o seu sorriso, a sua alegria, o seu AMOR que sempre me soube dar da melhor forma possível: como um pai que foi. Quero que ele volte...

Depois disto fiz um pouco de silêncio. Deixei-o olhar para a rua, para a porta de casa... Deixei-o sentar-se naquela relva e chorar tudo, pois só depois eu poderia falar. Passaram-se um minutos e as lágrimas enxugaram-se. Aí eu sabia que era hora de eu falar.
-Eu sei e tenho a certeza que pelo resto da tua vida o vais esperar, que vais esperar a chegada dele... Mas isso é pacífico e bom. É um ato de amor eterno.
-Eu sei disso... Mas porque me dizes que é um ato de amor eterno?
- Digo-to com toda a certeza e volto a dizer-te: vais esperar que ele volte, todos os dias da tua vida. Se não esperasses a sua chegada, significava que ele tinha morrido dentro de ti; e isso sei que nunca irá acontecer.



Pedro de França, in "Diálogos da minha criação"